sábado, 28 de maio de 2022

DISAFIO

 

WILDMAN CESTARI

 

 

— O que mais ouço dizer:

“Felicidade é castigo!”,

“O Sertão é mau senhor!”

Como ser feliz, amigo,

Se da morte é provedor?

 


— Deixa ora, homem, de bestices!

Que bem fazes te lembrar

De tristes e más tolices?

Mas pra ainda te falar,

Posso até dizer sem tema,

No exercício do pensar,

Pra elucidar o problema,

Que o Sertão tem o seu jeito

Tão próprio e peculiar;

Não sei se certo ou defeito,

Quer medir pra avaliar:

Se a chama que arde no peito

É capaz de suportar

As durezas do lugar.

 

— O rumo desta conversa

Pode ter outra preamar

Até bem menos adversa;

Mas antes inda te digo,

Do que ouço muito contar,

Só pra adiantar, amigo,

Que o Sertão na sua arte

Como guarda de reserva

Sempre quer a sua parte;

Súdito da Velha-Treva,

Tudo faz pra que lhe farte;

Esta cujo nome é forte

E também nunca tarda a hora

Nem da ceifa o duro corte,

Vem nos cobrar a penhora,

Certa como o vento norte,

Mas com multa, juro e mora;

Pois está sempre à espreita,

De mortalha entreaberta,

Capa bem medida e feita,

Terno de barata oferta,

Para a tal dita alma, eleita.

 

— Fazendo um pequeno aparte,

Sabe-se bem, ó compadre,

Na seca se vê no estandarte

A estampa da Voraz Madre;

Mas de uma coisa discordo

Ter o Sertão nisso parte,

É sobre isso que te abordo:

Que absurdo tal disparate?!

Se bem inda me recordo,

Para a lei de desempate

Como tiro a bacamarte:

O Sertão é o pai do forte;

A mãe dos fracos, a morte.

 

— Não se faz bem duvidar:

O Sertão se aliou à morte,

Todo mundo sabe já;

A voz do povo é a de Deus,

Com razão tem seu lugar,

Duvidar é obra de ateus!

Amigo, é bom, tás atento,

Uma palavra mal dita

Traz sempre padecimento,

Dirá a que deixa a alma aflita!

Veja os finíssimos galhos,

Os retorcidos arbustos,

Esquálidos espantalhos,

Como destes povos bustos;

Um povo que sempre à míngua,

Sem sequer um pingo d’água

Que lhe sacie a seca língua.

Pensar isso não é em vão,

Tenho ou não tenho razão?

 

— Ainda nos meus desdigos,

Eu só quero acrescentar:

Viver e morrer são antigos,

Coisa fácil de aceitar;

Pois nada há de anormal,

Passamos todos por isso,

É um círculo natural,

tarmos no mundo a serviço,

Seja do bem ou do mal;

Daí o Sertão não ter

Nada por que haver com isso.

 

— O Sertão tem vida própria,

Basta prestar atenção,

Não é isso onirocrisia

E não vã fabulação;

Ele tudo que quer pode,

Basta sacudir a mão.

Sem que mais nada o incomode,

Vem coroando de espinhos

As frontes nuas dos pobres;

Cristos cravados nos pinhos,

Sobre os açoites dos nobres,

Feitos cactos pontudinhos

À forte luz que lhes cobre;

Mais o abafado calor

Que Ele expele de antemão

Como carrasco opressor

Faz desgraçado o peão;

Com o ardo sol vingador,

Tal monstro da insolação

Vem, com muito mais pavor,

Tirar-lhe da mesa o pão.

 

— Isso não é bem verdade,

É coisa que não se diz,

Ato de leviandade

Dá, ao outro, alcunha infeliz.

O Sertão é só o Sertão,

Não há nada que isso mude;

Ao bioma da região,

Aliam-se clima e latitude;

Massas úmidas e frias,

Barradas pela altitude,

Criam tão pouca invernia ‒

Falta d’água nos açudes!


— Plantação, povo e gados,

Sem mais ter quem os acuda,

Passam de tudo usurpados,

Por não ter na vida ajudas

E assim seguem isolados,

Tal de Cristo um dia, Judas.

 

— Seria bom ter cuidado

Com o que tanto se alude,

Falar de algo não passado

É desrespeitoso e rude;

Pavão de cores plumado

Já não bebe água de açude,

Só vê terreiro impensado

Onde carcará não surge;

E não sabe o que do corpo

Bem lá mais pra dentro ruge:

Fome no esqueleto morto

Quando a Violenta insurge.